sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Os Evangelhos como Testemunho


Este livro é o mais amplo e de maior peso que se encontra, na literatura recente, no tocante às discussões do caráter da composição, estilo e transmissão das tradições dos Quatro Evangelhos. Esta resenha do professor Blomberg foi a melhor encontrada em termos de apresentar sistematizadamente o maior número de problematizações que o livro levanta e em quê elas tocam, escolhida assim como apresentação da obra para os leitores em português.

Richard Bauckham, Jesus and the Eyewitnesses: The Gospels as Eyewitness Testimony. Grand Rapids and Cambridge: Eerdmans, 2006. xiii + 538 pp.

Jesus e as Testemunhas Oculares: Os Evangelhos como Testemunho das Testemunhas Oculares


Este é o último ano letivo que Richard Bauckham leciona em tempo-integral nas suas funções como professor de estudo do Novo Testamento e Bishop Wardlaw Professor na Universidade de St. Andrews, na Escócia, antes de sua aposentadoria. Podemos somente esperar que “Jesus e as Testemunhas Oculares” esteja longe de ser a última grande monografia que ele compõe.[1] Este trabalho poderá ser justamente o mais importante que ele já tenha escrito. Mas dada minha inclinação para a importância do tema da “Fiabilidade dos Evangelhos", a minha perspectiva pode ser ligeiramente tendenciosa!

Em um breve capítulo introdutório, Bauckham envolve-se no território lotado do campo de estudos relativo aos Evangelhos Canônicos para o Jesus Histórico. A palavra-chave que os Evangelhos a fornecem é "testemunho" - uma expressão com implicações tanto históricas quanto teológicas. Bons historiadores no antigo mundo mediterrâneo tinham muito em conta a participação em eventos tanto quanto proximidade com depoimentos de testemunhas oculares. Dependência mais distante de fontes escritas de segunda mão fora considerada menos exemplar. Mas testemunhos inevitavelmente refletem como uma ou mais pessoas recordam dos acontecimentos, criando assim seletividade e distintivas ênfases e formas de recontar a história, o que vemos nos Evangelhos do Novo Testamento tão bem.


No corpo do livro, Bauckham lança-se imediatamente para o caso dos testemunhos das testemunhas oculares por trás dos Evangelhos. O depoimento de Papias, datado ao mais tardar de 130 d.C., é suficientemente modesto de modo a trair nenhum sinal de exagero apologético. Tal como em trabalhos anteriores, Bauckham defende uma distinção entre o João, o Ancião e João, o Apóstolo nos escritos de Papias, e considera que o primeiro e não o último escreveu o Quarto Evangelho.
No que diz respeito aos Sinóticos, Bauckham monta um intrigante caso para o número de ocasiões em que personagens nomeados, não-apóstolos, poderiam ter funcionado precisamente como essas testemunhas e os seus nomes inicialmente teriam servido como fiadores para a tradição. Contra a longamente promovida lei de Bultmann de incrementos das distinções, quando se move de Marcos para os outros Evangelhos e então para os primeiros Evangelhos não-canônicos, os nomes são mais retirados do que são adicionados. Essa situação não se reverte até o quarto e quinto séculos, um tempo no qual poucas novas informações que já não houvessem sido preservadas eram suscetíveis de surgir.

Utilizando o
Léxico de Nomes Judaicos na Antiguidade Tardia, de Tal Ilan, Bauckham demonstra como quase todos os nomes nos Evangelhos repetem-se em outros lugares em outros documentos ou inscrições antigas, muitos deles distintivamente nomes palestinos, não suscetíveis de serem escolhidos por alguém escrevendo mais tarde na diáspora sem informações históricas acuradas. Até mesmo a freqüência de vários nomes corresponde aproximadamente à freqüência do catálogo de Ilan. As formas das listas dos nomes dos discípulos são registradas, juntamente com a sua ordenação e específica coleção das semelhanças e diferenças, e igualmente sugere-se que elas foram averiguadas como fiadoras da tradição.
Em seu prólogo, Lucas fala de obter sua informação de todos aqueles que foram "as iniciais testemunhas oculares e ministros da palavra", linguagem historiográfica estabelecida pretendida para alegar cuidadosa preservação das informações sobre a vida e os ensinamentos de Jesus. O primeiro e o último discípulo nomeado em Marcos, selecionado para uma menção especial ao chamamento dos quatro primeiros seguidores de Jesus e quando as mulheres são chamadas a dizer-lhes para encontrar-se com Jesus na Galiléia depois da ressurreição, é Pedro, talvez confirmando testemunho de Papias sobre Marcos confiando especialmente na tradição petrina. João contém uma inclusão similar concernente ao "discípulo amado" (supondo que ele é igualado com o discípulo anônimo dos dois mencionados em João 1:35, e não posteriormente identificado como André - v. 40), a testemunha ocular que autentica o testemunho do Quarto Evangelho.

Mais apoio para um pano de fundo petrino para Marcos vem dos quatorze locais em que o narrador começa no plural referindo-se aos discípulos, mas, em seguida, desloca-se para um desconhecido "ele" e continua no singular. No contexto, o "ele" quase sempre significa Jesus, mas o modo de narrar é estranho a menos que Marcos escolheu-o dentre um dos discípulos propriamente e, tendo em conta os locais em que o fenômeno ocorre, o interior de um núcleo de seguidores que foi utilizado para falar desta forma sobre o seu mestre, sem necessariamente referi-lo pelo nome. A notável ausência de um positivo, proeminente papel de Pedro neste Evangelho (ao contrário dos outros) é melhor explicado se o papel que ele desempenha nesta narrativa não está relacionado com os postos que ele viria a ocupar liderando a comunidade cristã. E, quando ele adentrara para a liderança, a negação de Jesus por Pedro seria recordada, mantendo-se estável e insistida em todos os quatro Evangelhos, a menos que Pedro havia autorizado a sua preservação?

Alguns personagens anônimos nos Evangelhos também podem ter funcionado como testemunhas oculares “guardiãs”, com os seus nomes omitidos em uma espécie de antigo plano de “proteção da testemunha”- o homem em cuja casa Jesus e os Doze comeram a última Páscoa, o homem cujo burro Jesus tomara emprestado para a chamada entrada triunfal, o homem nu que fugira do Jardim do Getsêmani, a mulher que ungiu Jesus (não nomeada até Evangelho de João mais tarde), e o homem que cortara a orelha do servo do sumo sacerdote e ele próprio servo (novamente não identificado até os dias de João). Bauckham indaga, também, se a completa ausência de Lázaro dos Sinóticos não é por esta mesma razão: nenhuma das primeiras tradições incluira o nome dele e elas foram fielmente registradas como foram recebidas. Apenas no final do primeiro século, quando indubitavelmente todos esses personagens que desempenharam importante papel nos acontecimentos que protagonizaram incluindo a crucificação de Cristo foram mortos, foi-se completamente seguro para seus nomes.

Nesta conjuntura, Bauckham volta ao testemunho de Papias para argumentar que Marcos desempenhou o papel não tanto como o "intérprete de Pedro”, mas como o seu "tradutor", que a frase frequentemente reproduzida "de acordo com as necessidades” (pros tas chreias) na realidade significa que Marcos usou a forma retórica grega de chreia (ou episódios), e que a a falta de “ordem” de Marcos refere-se à falta de ordem cronológica (ou mesmo alta ordem literária) dado seu contorno tópico e estilo mais simples e estilo de escrita mais oralmente baseado. O testemunho de Papias sobre Mateus em seguida cai muito bem no lugar, com logia referindo-se a mais do que apenas ditos isolados e hermeneuta novamente significando "para traduzir" (do aramaico para o grego).

Uma seção particularmente útil e persuasiva volta à recente onda de estudos da tradição oral, história relembrada, memória social, e coisas do gênero. Bauckham está insatisfeito com uma taxonomia (tal como apresentado por
K.E. Bailey), que oferece apenas as três opções de “formal e controlada”, “informal mas controlada”, ou ”informal e descontrolada tradição”. Em essência, ele opta por uma posição intermédia entre a primeira e a segunda destas duas. Uma das razões para fazê-lo decorre do estudo de Vansina das tradições orais em culturas africanas primitivas, no qual (fictícios) contos e (históricos) relatos são distintos e maior cuidado é tomado para preservar o último. Esta distinção "refuta todas as alegações que os estudiosos dos Evangelhos, a partir da crítica da forma em diante, têm feito no sentido de que os primeiros cristãos, na transmissão das tradições de Jesus, não teriam feito qualquer distinção entre o tempo passado da história de Jesus e seu próprio presente porque sociedades orais não fariam essas distinções" (p. 273). Com Lemcio, as inúmeras distinções entre as ênfases dos Evangelhos sobre Jesus e do resto do acentuado no Novo Testamento reforça ainda mais a convicção de que os dois períodos foram mantidos separados nas mentes dos primeiros cristãos.
Empurrando a questão um pouco mais longe, Bauckham demonstra que não há apoio antigo para a idéia do “anônimo coletivo”. Tradições são sinalizadas e identificadas com as fontes. Às vezes essas fontes formam um grupo, como com os Doze, mas o perigo em aplicar o estudo da memória social associado com Halbwachs, subitamente popular em vários círculos bíblicos, é que nenhum espaço é deixado para memórias individuais distintas. Três dimensões devem ser distinguidas: "(1) a dimensão social da recordação individual (2), a partilha de recordações de um grupo, e (3) memória coletiva" (p. 313) - o que nenhum membro do grupo na realidade relembra mas do qual todos foram informados repetidamente. A última delas é a que os teóricos da memória social frequentemente estudam e aplicam-na à maioria dos Evangelhos, embora seja a dimensão, dentro da primeira geração do Cristianismo, que menos se encaixa!


O que precisa de mais análise, portanto, é a memória da testemunha ocular. Sem dúvida, importantes e vívidos eventos na vida de alguém, especialmente como uma jovem pessoa ou jovem adulto, podem ficar com eles durante décadas, sobretudo se freqüentemente ensaiadas e / ou reditas. Quando ocorre lacunas na memória de alguém, no entanto, elas podem ser preenchidas com outras memórias de eventos similares em ocasiões distintas. Em geral, na vida cotidiana, porém, os êxitos da memória de longe superam as falhas de memória. Todas essas tendências devem ser aplicadas para a formação dos Evangelhos muito mais do que têm sido até agora.

Capítulos adicionais tratam sinais de materiais de testemunhos oculares ao longo do Quarto Evangelho, o papel de "testemunho" como um tema central no Evangelho, e o "discípulo amado" como fonte de testemunho ocular por trás da narrativa. Curiosamente, Pedro continua a ser o líder e mais proeminente dos Doze, o discípulo amado é superior somente na sua capacidade para testemunhar a veracidade do relatado. Bauckham conclui que "é difícil acreditar que um escritor pseudepígrafo teria inventado um personagem que requeria essa brilhante estratégia para estabelecer a sua reivindicação como uma testemunha ocular" (p. 409).

Um regresso final a Papias defende a opinião de que suas declarações sobre as origens do Quarto Evangelho divulgam que João, o Ancião, talvez instado por outros anciãos, que juntos tinham conhecido vários membros dos Doze, escreveu o Evangelho como o conhecemos. Esses anciãos são os "nós" a quem se reportará para a verdade da narrativa em 21:24. O desvio que Bauckham coloca nesta reconstrução (dentre muitos que têm adotado uma outra semelhante) é que este João o Ancião foi ele mesmo o Discípulo Amado e a idosa testemunha ocular dos eventos narrados. Assim, ele funciona praticamente da mesma forma que João o Apóstolo o faz na visão tradicional. Bauckham passa a discutir o testemunho de
Polycrates e Irineu, que ele acredita que apóia e desenvolve a sua interpretação.

Um capítulo de fechamento traz o estudo completo para a questão do testemunho de Jesus. Notando que é uma noção moderna, imprudente e algo arrogante pensar que historiadores não precisam se apoiar sobre os ombros dos gigantes do passado, mas podem investigar novamente antigos e complexos temas a partir do zero, por assim dizer, independente de seus predecessores, Bauckham apela para
Ricoeur e a uma crítica abordagem realista para historiografia. Ele utiliza a comparação com o o testemunho do holocausto para mostrar como alguém pode ser um tanto apaixonadamente comprometido com uma causa que o testemunho de alguém apoia e fornece depoimento preciso. Na verdade, certos tipos de causas, tal como argumentar para Deus agindo singularmente na história do evento-Cristo, exige-o.

Como em todas as suas obras, Bauckham tem saqueado a obscura literatura secundária para informações pouco conhecidas mas imensamente úteis. Ele tem pensado criativamente sobre problemas gastos pelo tempo e descoberto possíveis interpretações de sutis características do testemunho antigo - nos Evangelhos e sobre eles - com a astúcia de um bom detetive. Quase nada, das suas propostas, revela-se implausível, mesmo que algumas parecem mais prováveis do que outras. O efeito cumulativo do volume é sugerir que persistem ainda mais vias a explorar que dão suporte a confiabilidade histórica dos Evangelhos e o testemunho das testemunhas oculares em que se baseia. Sou particularmente agradecido que o livro apareceu seis semanas antes em que a edição revisada de meu Historical Reliability of the Gospels foi esperada publicar, assim eu pude incorporar alguns dos materiais de Bauckham em minhas revisões. Este é um volume a ser elogiado o mais calorosamente por todas as pessoas interessadas no tema e, especialmente para alguém tentado a se desviar para os modelos alternativos mais céticos da formação dos Evangelhos e da veracidade do seu conteúdo.


Craig Blomberg, Ph.D.
Distinguished Professor of New Testament
Denver Seminary
January 2007


NOTAS

[1] O Professor Bauckham encontra-se atualmente aposentado, tendo produzido ainda robustos trabalhos, dentre eles, “The Testimony of the Beloved Disciple: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John”, e "The Jewish World around the New Testament: Collected Essays 1".



N.T. Wright - Bispo Anglicano de Durham e professor aposentado de Cambridge e Oxford:
A questão quanto a se os Evangelhos são baseados em relatos de testemunhas oculares tem sido controversa. Agora Richard Bauckham, em um tour de force característica, baseia-se em seu conhecimento incomparável do mundo dos primeiros cristãos, não só para argumentar que os Evangelhos realmente contém depoimentos de testemunhas oculares, mas que os seus primeiros leitores certamente teriam reconhecido-o como tal. Este livro é um notável trabalho de detetive, resultando em uma abordagem fresca e viva a dezenas, talvez centenas, de passagens e problemas bem conhecidos.
Graham Stanton - Universidade de Cambridge:
O mais recente livro de Richard Bauckham estremece as bases de um século de estudo acadêmico dos Evangelhos. Há surpresas em cada página. Um manancial de novas percepções provocará discussões animadas por um longo tempo a vir. Os leitores em todos os níveis serão gratos para com o trabalho de detetive que descobre pistas perdidas por tantos.
James D.G. Dunn - Universidade de Durham :
Outro grande sucesso da caneta produtiva de Richard Bauckham. Estimulado especialmente por Samuel Byrskog, "Estória como História - História como Estória", Bauckham constrói um caso impressionante de reconhecimento da influência de controle de testemunhas oculares sobre a formulação e a utilização da tradição de Jesus, que resultou no 'Jesus do testemunho' dos Evangelistas. A não perder!
Martin Hengel - Universidade de Tübingen:
Um livro fascinante! Eu não via algo como essa monografia, estimulando a pesquisa sobre Jesus, por um longo tempo. Com seus altos padrões acadêmicos e argumentos astutos, 'Jesus e as Testemunhas' mostra novas perspectivas e formas de investigação. Tornar-se-á, portanto, um trabalho pioneiro refutar os erros antigos e novos. Este livro deve ser lido por todos os teólogos e historiadores que trabalham no campo do cristianismo primitivo. Além disso, o convincente método histórico e aprendizagem ampla de Bauckham também irão ajudar os pastores e os alunos a superar as fantasias generalizadas do 'Jesus moderno'.
Suplemento Literário The Times:
Bauckham é cuidadoso e eloqüente na apresentação de seu argumento, não suportado apenas por pesquisas acadêmicas cuidadosas, mas pelo bom senso admirável; merece uma análise séria por todos.

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